sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Sabia que estavam à minha espera — Adeus, Aretha

No céu, Aretha Franklin vai ter muitos fãs à sua espera. Freddie Mercury e George Michael já devem estar em pulgas.

Já os estou a ver em pulgas à porta do céu. "A Aretha vem aí, a Aretha vem aí!", exclama o George, visivelmente entusiasmado. Mal ouviu a notícia, foi logo buscar os Ray-Ban Aviator e o casaco de cabedal que queimou no vídeo do "Freedom '90" (no céu, os casacos de cabedal também ressuscitam) para receber a rainha com a pompa do vídeo de "I Knew You Were Waiting (For Me)".

"Rainha?! Quem é que me chamou?", intervém Freddie, a chegar ao portão do céu enquanto termina a ponta de um cigarro.

"Não és tu, Freddie! É "a" rainha! Ela vem aí!", responde o George a ajeitar nervosamente a cabeleira loira (no céu, o George Michael adoptou o look do "Faith").

"Como assim a rainha? A Aretha?! A Aretha morreu? Poor darling", suspira o Freddie, ao mesmo tempo que atira a beata para o chão, ateando mais um foco de ignição na Serra de Monchique. "Aquela voz... Quem me dera cantar como ela! Sabias que ela é a minha cantora favorita?"

"Também a minha! É a melhor de sempre!", sorri o George. "Quando ela chegar, vou recebê-la como no vídeo "I Knew You Were Waiting"!".

"Ah, então por isso é que estás assim vestido!", desmancha-se a rir o Freddie, deixando sair a sua dentuça toda cá para fora (no céu ainda se recusa a fazer a qualquer intervenção cirúrgica que lhe possa afectar a projecção da voz). "Nada disso, darling. Vamos os três fazer um trio. E vai ser uma lenda nos céus!".



Confesso. Não sou a pessoa mais qualificada para falar sobre Aretha Franklin. O Soul não é a minha praia e o meu tema preferido que a Aretha cantou é o "I Knew You Were Waiting (For Me)", um dueto com o George Michael. Conheco-a através do George e do Freddie Mercury. Sei da forma que falavam dela. Sei que era a cantora favorita de sempre dos meus cantores favoritos de sempre.

Vejam os olhos do Freddie e do George brilhar quando falam dela. Quando ouvimos o Freddie Mercury suspirar que o sonho dele era cantar como a Aretha, nem é preciso dizer mais nada. Na prática, a Aretha está para o Freddie e para o George, na mesma medida em que eles estão para mim; é a deusa dos meus deuses. E isso chega-me para saber da sua importância e lhe deixar toda a minha reverência e R-E-S-P-E-C-T.

Gosto de pensar que ela foi ter com eles e que eles estão em êxtase por verem o seu maior ídolo. E que vão gravar um tema a três que vai conquistar e que nós só poderemos ouvir quando nos juntarmos a eles. Até lá fiquemos com a música terrena da Aretha.

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Monumental, a vida do espantalho tarkovskiano dos Godspeed You! Black Emperor

A banda canadiana de Post Rock levou o espectáculo 'Monumental' ao Barbican

Quando Andrei Tarkovsky ganhou reconhecimento como filmmaker nos anos 70, começaram a aparecer nas salas de cinema os espectadores que não iam bem para ver o filme, mas sim para o evento social que era ver um filme do Tarkovsky. Com a consciência que o efeito viral passa depressa  (mesmo à escala dos anos 70), esta tendência irritou Tarkovsky de sobremaneira, que queria que os seus filmes fossem vistos pelo "seu" público, aquele que ele tinha construído de forma paulatina e consistente ao longo da sua carreira.

O efeito viral foi especialmente relevante quando saiu "Solaris" em 1972, o filme que fora promovido pelo regime soviético como a resposta a Kubrick. Era o "2001 Odisseia no Espaço" soviético e um evento nacional. Tarkovsky plantou então aquilo que eu chamo de espantalho tarkovskianoa cena da auto-estrada. No início do filme, uma cena mostra em tempo real a viagem do psicólogo Kris Kelvin, num plano doloroso de 5 minutos que desafia a paciência dos espectadores e que em última instância espantou para para fora da sala aqueles que não estavam lá para ver o filme.


https://www.youtube.com/watch?v=rswYl7RLRNE

O universo dos Godspeed You! Black Emperor está repleto de espantalhos tarkovskianos. Estes visam espantar os curiosos e em última instância atrair apenas quem está disposto a dar um pouco de si mesmo e sofrer pela arte que recebe. Atentem, por exemplo, no primeiro álbum "F# A# oo", lançado em 1997. Começamos logo pelo nome — dar um nome impronunciável logo ao primeiro álbum é um exemplo proverbial de um espantalho tarkovskiano. Depois há a duração das canções, todas com uma duração superior a 17 minutos. Parece algo terrivelmente inacessível. Mas não, não passa de um espantalho. Na verdade, se prestarem a devida atenção à música, percebem que afinal são apenas uma sequência temática de pequenos crescendos que podem ser separados e até ter uma vida independente. Bandas sonoras para filmes que ninguém fez. Mais importante que tudo, são peças acessíveis a toda a gente que tenha alguma paciência para se deixar tomar pela música.

Vem esta reflexão a propósito do espectáculo "Monumental", que deu vida a algumas destas pequenas peças dos Godspeed You! Black Emperor, com a ajuda da companhia de dança canadiana The Holy Body Tattoo, num espectáculo que eu melhor posso baptizar como um bailado pós-apocalíptico. O repertório concentrou-se no primeiro álbum, mas também incorporou alguma música mais recente dos álbuns "Asunder, Sweet and Other Distress" e "Luciferian Towers".

Mas afinal o que é isto do bailado pós apocalíptico? Passo a explicar. "Monumental" é um espectáculo multi sensorial que retrata a distopia para onde definha a nossa sociedade e está estruturado em três dimensões, representadas no palco por três níveis sucessivos:

  • Lá atrás, no pano de fundo, são projectadas imagens e frases de Jenny Holzer, que dão o contexto de desumanização da nossa sociedade: "Some days you wake us and immediately start to worry. Nothing in particular is wrong, it's just the suspicion that forces are aligning quietly and there will be trouble"
  • À frente do pano, no fim do palco, os Godspeed You! Black Emperor enchem a sala com o seu som cru e monolítico. 
  • Na frente do palco, em primeiro plano, os dançarinos actuam em extensão da música, numa coreografia que amplia a realidade projectada na tela e aumenta o volume dos sentimentos da audiência.

Os textos de Jenny Holzer fundem-se na perfeição com a dança e a música dos Godspeed. Quase a chegar ao clímax do espectáculo, os actores entram numa espiral de destruição e loucura, enquanto na tela são projectadas frases sobre como a sociedade nos puxa aos limites:
"By your response to danger, it is easy to tell how you have lived and what has been done to you: you show the rage that's within you, whether you want to stay alive, whether you think you deserve to and whether you believe it's any good to act."
Um a um, os dançarinos começam a cair em palco.

Depois de duas horas intensas do definhar da civilização à frente dos nossos olhos, o espectáculo atinge o clímax com o apocalipse — todas as luzes da sala vão abaixo e restam apenas algumas lanternas dos poucos sobreviventes em palco. Toca a obra-prima dos Godspeed — "The Dead Flag Blues". Quando os oceanos secarem, os céus se pintarem de vermelho com as chamas do que está em terra e as bandeiras se deitarem mortas no topo dos mastros, qual é a música que vai tocar? Esta:


https://www.youtube.com/watch?v=XVekJTmtwqM

"The sky was beautiful on fire, all twisted metal stretching upwards"

P.S.: Um dos desafios para fazer o episódio do London Calling de há umas semanas (apropriadamente intitulado "The Flags Are All Dead") foi precisamente desmontar esta estrutura aparentemente complexa e apresentar algumas secções da música dos Godspeed You! Black Emperor em separado, de modo a mostrar que elas têm vida própria e são de facto acessíveis a todos. Para melhor perceber os Godspeed, "The Flags Are All Dead" é de audição obrigatória.