quinta-feira, 29 de março de 2018

É Xutos, pá! — Os Xutos & Pontapés como linha de apoio ao emigrante

Como os Xutos & Pontapés entraram na minha vida aos 32 anos

Foi num daqueles constrangedores Encontros de Quadros onde pessoas que trabalham juntas durante o dia são atiradas para um ambiente anacrónico de copos à noite, sem que ninguém saiba ao certo até onde pode ir. Eram umas 4 da manhã e já pouca gente restava na discoteca da cave do Hotel do Vimeiro — local clássico destas reuniões da empresa —, quando um colega de outro sector, com quem nunca tinha conversado para além da prosaica troca de bons-dias, veio até mim com voz ébria, mas decidida: "Oh Bento! Tu que percebes de música, vai lá dizer ao DJ para meter música a sério!". (independentemente de termos falado ou não, todos na empresa sabiam de duas coisas sobre mim: que era doido por música e... pelo Benfica). Eu, que também já ia com uma bela pedalada, mas ainda umas cinco imperiais atrás do camisola amarela à minha frente, deixei-me rir e perguntei cinicamente: "mas o que é isso de 'música a sério?'". O meu colega inclinou-se para trás e meio desequilibrado da bebedeira, ergueu os braços em cruz e gritou: "É Xutos, pááá!!!". Como bom snob musical que à época só ouvia New Order, The Smiths e restante onda oitentista mancuniana, sorri de escárnio e corri aos meus colegas de sector para contar o insólito episódio. Nasceu ali uma inside joke que durou anos, durante os quais nos referimos aos Xutos & Pontapés de forma trocista como "É Xutos, pá!".

É clichê dizer-se que só se dá o devido valor às coisas quando as perdemos. E é um clichê dizer-se isto porque é absolutamente verdade. Viver fora do país ensina muita coisa e se ser emigrante não me deu (ainda!) para gostar de fado, permitiu-me em contrapartida perceber a verdadeira magnitude dos Xutos. E que o meu colega tinha razão.

Não é que eu tivesse falta de know-how de Xutos. Os êxitos, obviamente que os conhecia a todos. E como não? Eles são parte do património intelectual de Portugal, é impossível não os saber de cor. Mais, os Xutos são das bandas que vi ao vivo mais vezes — 6 no total, só atrás do David Gilmour com 8 vezes. O primeiro concerto que fui ver sem o meu Pai, foi Xutos em Lloret Del Mar (quer dizer, 'ver' é como quem diz; mas garantem-me que estive lá e tenho uma t-shirt para o provar). E no entanto, com tantos Xutos na minha vida, faltava-me ainda OUVIR os Xutos & Pontapés; faltava-me prestar atenção ao que têm para dizer, principalmente quando eles tinham tanto para dizer, em álbuns como "Cerco" de 1985 (o primeiro da formação clássica da banda) e "Circo de Feras" de 1987. Álbuns que moldam uma vida. Como estão a moldar a minha agora.

Tenho a firme convicção que a música nos chega apenas quando estamos preparados para ela. Toda a música nos chega no tempo certo, porque mesmo que chegue antes, não importa, não a vamos ouvir devidamente. A entrada da música dos Xutos & Pontapés em forma de torrente nesta fase da minha vida comprova esta teoria, ou não fosse o reportório da banda de Almada uma verdadeira linha de apoio ao emigrante.

É estranho que nenhum dos Xutos tenha, de facto, emigrado. Porque está lá tudo. Há as referências óbvias, como "as saudades que eu já tinha da minha alegre casinha", mas isso soa-me emocionalmente vápido — como a maioria do alinhamento do álbum "88"; não sei se por sobre-produção, se por sobre-reprodução — , quando comparado com a crueza bruta e honesta das canções de "Cerco". É aqui que o meu coração encalha, nos amores perdidos de "Conta-me Histórias", ou nas vidas perdidas de "Homem do Leme" (não se deixem enganar, procurem a versão original, incluída no álbum; é essa que querem ouvir) — "Sozinho na noite, um barco ruma, para onde vai? / Uma vontade de ir, correr o mundo e partir, a vida é sempre a perder".

Mas há muito mais de onde esta veio. "Contentores", de "Circo de Feras", é uma mina de referências à mudança de vida: "Carga pronta e metida nos contentores, adeus aos meus amores que me vou p'ra outro mundo / Mudaram todas as cores, rugem baixinho os motores e numa força invencível, deixo a cidade natal / É uma escolha que se faz, o passado foi lá atrás" — é a fuga para outro lugar, longe das raízes, sem olhar para trás. "Vida Malvada", do mesmo álbum, segue-lhe o rasto: "Adeus às praias cheias de gente e um beijo p'ra quem fica". Mas o maior catalisador motivacional (e obra-prima maior dos Xutos?) tem que ser o eufórico, revoltado e até provocatório "N'América": "Eu vou ter que sair, eu vou ter que partir / Finalmente vais ver, o que é que eu iria ser, o que é que eu iria ter... n' Américaaa". Sublime retrato do estado de espírito de quem muda de vida.



É aquela rara e preciosa sensação Springsteeniana que estão a falar comigo; que alguém, um dia, tomou notas e escreveu música sobre a minha vida. Não importa o seu significado original, porque eu tomei estas canções para mim. São minhas, agora. São sobre o meu commute diário, sobre os dramas e alegrias da minha vida em Londres, ou simplesmente a banda sonora enquanto corro desalmado para o metro, para tentar vencer o mau hábito de chegar atrasado.

"E quando as nuvens partirem, o céu azul ficará / E quando as trevas se abrirem, vais ver o sol brilhará" ("Não Sou O Único") é bálsamo para os ouvidos de quem está numa terra onde nunca se vê o sol. E no entanto, tal como em "Vida Malvada", ando de "óculos escuros a torto e a direito" (já me perguntaram se tenho algum problema), porque a ouvir Xutos, na minha cabeça o sol brilha. Bem, pensando melhor, talvez tudo isto seja um exercício de olhar para trás. Mas como não? Portugal continua a ser a minha casa. E os Xutos aproximam-me da minha casinha.



P.S.: Apesar de ter passado estes anos todos a gozar com o "É Xutos, pá!", a verdade é que fui lá mesmo pedir Xutos como o meu colega pediu. O DJ pôs a "Casinha" e foi uma maravilha.

P.P.S.: Dizem que só damos valor ao que não temos e só elogiamos quem já cá não está (o que é verdade, como vimos em cima). Pois bem, vou por isso aproveitar para me antecipar ao guião e deixar a minha homenagem ao meu Xuto preferido — o João Cabeleira. Sem desprimor para os outros Xutos, o Cabeleira tem algo que os separa dos demais. É mais sujo. É mais perigoso. É mais repugnante. E digo isto no melhor dos sentidos. O ar hardcore tem correspondência com o som que sai da sua guitarra, a esborratar continuamente a pintura de fino toque da secção rítmica composta pelo Tim, Kalú e Zé Pedro. Citando a minha mãe quando me quer chamar de javardola, é "uns a limpar por um lado e outros a sujar pelo outro". É isso que o João Cabeleira faz às canções dos Xutos & Pontapés. E ainda bem, que é assim que eu gosto dos meus Xutos — quanto mais sujos, melhor.

quinta-feira, 22 de março de 2018

Os budas dos subúrbios

Nos subúrbios de Londres ferve Rock 'n' Roll que anseia sair

Quinta-Feira, seis da tarde. À porta de uma pequena loja de discos nos subúrbios de Londres, para lá da Zona 9, forma-se uma fila a perder de vista. O motivo? Tocava uma banda que ia ali apresentar o seu álbum de estreia. Sim, leram bem. Nenhum álbum lançado e já aquele frenesim. Mas quem? Perguntei à menina do balcão da loja — The Magic Gang, responde ela (ler com acentos nos aas — "mágic gáng"), seguríssima da resposta. Eu aceno afirmativamente, como quem diz com o queixo "muito bem, gosto muito". Nunca ouvi falar. Fuck me, que vergonha. O que é que eu estou a fazer neste fim de mundo suburbano, anyway? O amor ao Rock 'n' Roll tem coisas incríveis. Saio para a rua e vejo que a fila já dá a volta ao quarteirão. Quem é que veio ao concerto? Sendo uma banda rock, a audiência é obviamente mais velha; homens e mulheres acima dos 40 anos, munidos de casacos de cabedal espojados, a cheirar a mofo, comprados quando o Kurt Cobain ainda era vivo. Só que não.

Na verdade, a fila é constituída quase exclusivamente por miúdos abaixo dos 18 anos, que devem ter corrido para a loja ao toque de saída da Community School lá do sítio. É uma fila extensa, jovem e muito barulhenta. Principalmente a franja feminina, que a páginas tantas rebenta em histeria quando o guitarrista — denunciado pelo instrumento a tiracolo — se aproxima para falar com uma das meninas. "See you later!", diz ele em voz alta, exponenciando o entusiasmo daquele grupo juvenil. Eu? Fico à distância, a observar aquela intensa interação sociológica — um coito platónico, até porque a idade das meninas não dava para maluqueiras maiores. No alto dos meus 32 anos, devo ser o mais velho naquele passeio, já estou contando com a própria banda (o mais velho é Kristian Smith, com 25). Adoro tudo o que se está a passar à minha volta. A electricidade no ar é evidente, quase tão evidente como o frio obsceno que a corrente polar trouxe a Londres. Mas naquela fila nos subúrbios londrinos, o Rock 'n' Roll aquece o coração das adolescentes. Ali não se sente o frio. E que bonito é ver aquele amor genuíno pela música.

Quem disse que o Rock está morto? Ele vive e borbulha por aí, nas pequenas lojas de música nos subúrbios das metrópoles. E a julgar pela amostra aqui, há fome de Rock na juventude. Hajam bandas com ganas para nos satisfazer a gula e juntar-se-á a fome à vontade de comer. Eu é que já estou velho para estas andanças, mas isso é outra conversa. Não, não fui ao concerto. O que é que foi? Antes de julgarem, atentem nos números: 32 anos; 0 graus centígrados; 7 da tarde; a pé desde as 5 da manhã. A matemática fala por si — era hora de ir para casa, que o jantar não se faz sozinho e nem só de Rock eu me alimento. Até porque ainda me esperava hora e meia de caminho no regresso ao centro de Londres. Meti-me no autocarro, liguei o Spotify e lá fui eu ouvir os The Magic Gang pelo caminho.

O veredicto dos rapazes de Brighton? São uma banda de pop melódica (que hoje vai fatalmente para a vala comum do Indie Rock) de audição fácil e um inusitado arrojo para dar posição frontal às guitarras. São solos curtos e esporádicos, é certo, mas para quem quer ser ouvido na rádio nos dias que correm, é um sinal de coragem. O melhor tema da banda, "All That I Want Is You", demonstra isto mesmo. Em baixo está a versão original, incluída no EP de 2016, sendo que o tema foi-me  regravado para o álbum de estreia, homónimo, lançado esta semana.



O grande problema dos The Magic Gang? São muito lavadinhos e têm um ar demasiado amigável para o meu gosto. Será preciso maior audácia para que uma banda Rock volte a conquistar o mundo. Essa banda não será com certeza os The Magic Gang. Mas hey, a música é boa e haverá sempre espaço para bandas de bons rapazes.

P.S.: Para quem não é um book buff (ou um Bowie buff), o titulo da crónica e uma referência ao romance de Hanif Kureishi, sobre um adolescente desesperado por abandonar os subúrbios do Sul de Londres.

quarta-feira, 14 de março de 2018

Definitivamente talvez

"I can't tell you the way I feel, because the way I feel is all so new to me", ou os altos e baixos da vida de um novo Londoner.



Dia 1 — 5:00

O que é que eu fui fazer à minha vida?

Eu tinha tudo. Uma vida tranquila, uma casa na praia, um emprego estável, carro pago ao banco, tudo. O que me terá então passado pela cabeça, para mandar tudo ao ar e ir para Londres correr atrás de uma fantasia? O que raio fui eu fazer à minha vida?!

Era só este pensamento que me martelava em loop enquanto me olhava ao espelho àquela hora - às 5 da porra da manhã, hora obscena a que estou obrigado a me levantar para fazer o commute diário para o trabalho. Mas isto são horas para alguém que não sofra de incontinência "já" estar de pé? Se ainda fosse "ainda"... Logo eu, um noctívago, dorminhoco inato, que tantas vezes me levantei às 9:00 em dias de semana, depois de vencer o despertador pelo cansaço de tanto tocar. Logo eu, um atrasadista por excelência, que nunca cheguei a horas a coisa nenhuma, nem sequer a entrevistas de empregos onde fiquei (incluindo este). Logo eu, que sempre desconfiei de pessoas que chegam a horas. Logo eu, que sempre olhei para quem acorda com a pica toda (morning fucking people) como um sinal desviante de sociopatia. Logo eu, que sou este somatório de indigências sociológicas, fui meter-me na terra conhecida mundialmente pela pontualidade.

Àquela hora estranha para um ser humano estar acordado, depois de uma noite dormida em blocos de hora-e-meia, só me ecoavam na cabeça as palavras da minha avó de 95 anos (parece-me importante sublinhar a longevidade da senhora), que me ligara na noite anterior em prantos, a perguntar "meu filho, o que foste fazer à tua vida?!". Sei lá, Vó. Sei lá.

Como em todos os outros precipícios da minha vida, sempre o mesmo arnês na hora da queda. A música. Nas colunas tocava "Definitely Maybe" dos Oasis. O álbum que me me salvou a vida quando tinha 15 anos, veio outra vez em meu socorro e estava ali a segurar-me a mão. Firme. Não deixa cair.
"There we were, now here we are; all this confusion, nothing's the same to me" / "I can't tell you the way I feel, because the way I feel is all so new to me", cantava Liam Gallagher em "Columbia", alinhando versos com o que eu sentia naquela manhã. Da cabeça confusa de um adolescente para a de um adulto não menos confuso, foi um pequeno salto. Levantei a cabeça, penteei o cabelo à Londoner e saí de casa a sentir-me "Supersonic".


Dia 1 — 8:06

Quando cheguei ao trabalho, tinha uma surpresa à espera. Não, não era a carta de despedimento por ter chegado atrasado OUTRA VEZ, logo no meu primeiro dia. Não. Já me tinham dado trabalho. Que era nem mais nem menos que parte do projecto de reabilitação da Battersea Power Station. A BATTERSEA POWER STATION! Para quem não sabe, é a central termoeléctrica na margem sul do Tamisa que aparece na capa do álbum "Animals" dos Pink Floyd e que eu só não classifico taxativamente como a capa mais fixe de sempre, porque os Pink Floyd têm outras artworks que também são as mais fixes de sempre. E sim, eu tenho a perfeita noção que tenho um problema com a exclusividade do conceito de "melhor de sempre". Já me disseram.


Mas isto? Isto é a Battersea Power Station! Aqui não há dúvidas, é mesmo o meu edifício preferido de sempre! Aquele que eu desenhava no caderno quando tinha 12 anos. É o meu sonho. Não, corrijo, nem nos meus sonhos me vi a trabalhar aqui. É um sinal! Só pode ser um sinal que estou no sítio certo, que fiz a escolha certa, que tudo estava escrito e destinado! Agora não é só "in my mind my dreams are real" ("Rock 'n' Roll Star"). Agora é aqui mesmo em carne, osso, betão e estrutura metálica. Tudo aconteceu por uma razão, todas as estradas vieram dar aqui.


Dia 1 — 18:16

Saí da estação de Earls Court, atravessei a estrada e fiz aqueles 100 metros até minha casa em lágrimas. Não sei se por tristeza, se por alegria. Estava assustado com todas as mudanças, mas ollhava à minha volta e via uma beleza idílica, parecia um filme. Finalmente cumpriu-se Londres. "These could be the best days of our lives, but I don't think we've been living very wise" ("Digsy's Dinner"). Naquele momento, tive a certeza que tomara a decisão correcta. Tudo parecia fazer sentido.

Entro em casa e percebo que não havia aquecimento. A senhoria não queria saber disso nem dos outros problemas da casa. E logo percebi que afinal nada era perfeito. Meu Freddie, o que raio fui fazer à minha vida? Intercalo agora períodos de êxtase indescritível com arrependimentos madalénicos. É difícil explicar a montanha-russa emocional onde viajo por estes dias. É muita coisa a acontecer ao mesmo tempo e sinto que a minha cabeça vai explodir. O meu sonho londrino está definitivamente a ser um desastre. Ou talvez o sonho seja mesmo assim. Talvez se fosse de outra forma não seria tão bom. Talvez tenha tomado mesmo a decisão certa em vir atrás da minha fantasia. Fuck knows. Definitivamente talvez.