Como os Xutos & Pontapés entraram na minha vida aos 32 anos
Foi num daqueles constrangedores Encontros de Quadros onde pessoas que trabalham juntas durante o dia são atiradas para um ambiente anacrónico de copos à noite, sem que ninguém saiba ao certo até onde pode ir. Eram umas 4 da manhã e já pouca gente restava na discoteca da cave do Hotel do Vimeiro — local clássico destas reuniões da empresa —, quando um colega de outro sector, com quem nunca tinha conversado para além da prosaica troca de bons-dias, veio até mim com voz ébria, mas decidida: "Oh Bento! Tu que percebes de música, vai lá dizer ao DJ para meter música a sério!". (independentemente de termos falado ou não, todos na empresa sabiam de duas coisas sobre mim: que era doido por música e... pelo Benfica). Eu, que também já ia com uma bela pedalada, mas ainda umas cinco imperiais atrás do camisola amarela à minha frente, deixei-me rir e perguntei cinicamente: "mas o que é isso de 'música a sério?'". O meu colega inclinou-se para trás e meio desequilibrado
É clichê dizer-se que só se dá o devido valor às coisas quando as perdemos. E é um clichê dizer-se isto porque é absolutamente verdade. Viver fora do país ensina muita coisa e se ser emigrante não me deu (ainda!) para gostar de fado, permitiu-me em contrapartida perceber a verdadeira magnitude dos Xutos. E que o meu colega tinha razão.
Não é que eu tivesse falta de know-how de Xutos. Os êxitos, obviamente que os conhecia a todos. E como não? Eles são parte do património intelectual de Portugal, é impossível não os saber de cor. Mais, os Xutos são das bandas que vi ao vivo mais vezes — 6 no total, só atrás do David Gilmour com 8 vezes. O primeiro concerto que fui ver sem o meu Pai, foi Xutos em Lloret Del Mar (quer dizer, 'ver' é como quem diz; mas garantem-me que estive lá e tenho uma t-shirt para o provar). E no entanto, com tantos Xutos na minha vida, faltava-me ainda OUVIR os Xutos & Pontapés; faltava-me prestar atenção ao que têm para dizer, principalmente quando eles tinham tanto para dizer, em álbuns como "Cerco" de 1985 (o primeiro da formação clássica da banda) e "Circo de Feras" de 1987. Álbuns que moldam uma vida. Como estão a moldar a minha agora.
Tenho a firme convicção que a música nos chega apenas quando estamos preparados para ela. Toda a música nos chega no tempo certo, porque mesmo que chegue antes, não importa, não a vamos ouvir devidamente. A entrada da música dos Xutos & Pontapés em forma de torrente nesta fase da minha vida comprova esta teoria, ou não fosse o reportório da banda de Almada uma verdadeira linha de apoio ao emigrante.
É estranho que nenhum dos Xutos tenha, de facto, emigrado. Porque está lá tudo. Há as referências óbvias, como "as saudades que eu já tinha da minha alegre casinha", mas isso soa-me emocionalmente vápido — como a maioria do alinhamento do álbum "88"; não sei se por sobre-produção, se por sobre-reprodução — , quando comparado com a crueza bruta e honesta das canções de "Cerco". É aqui que o meu coração encalha, nos amores perdidos de "Conta-me Histórias", ou nas vidas perdidas de "Homem do Leme" (não se deixem enganar, procurem a versão original, incluída no álbum; é essa que querem ouvir) — "Sozinho na noite, um barco ruma, para onde vai? / Uma vontade de ir, correr o mundo e partir, a vida é sempre a perder".
Mas há muito mais de onde esta veio. "Contentores", de "Circo de Feras", é uma mina de referências à mudança de vida: "Carga pronta e metida nos contentores, adeus aos meus amores que me vou p'ra outro mundo / Mudaram todas as cores, rugem baixinho os motores e numa força invencível, deixo a cidade natal / É uma escolha que se faz, o passado foi lá atrás" — é a fuga para outro lugar, longe das raízes, sem olhar para trás. "Vida Malvada", do mesmo álbum, segue-lhe o rasto: "Adeus às praias cheias de gente e um beijo p'ra quem fica". Mas o maior catalisador motivacional (e obra-prima maior dos Xutos?) tem que ser o eufórico, revoltado e até provocatório "N'América": "Eu vou ter que sair, eu vou ter que partir / Finalmente vais ver, o que é que eu iria ser, o que é que eu iria ter... n' Américaaa". Sublime retrato do estado de espírito de quem muda de vida.
"E quando as nuvens partirem, o céu azul ficará / E quando as trevas se abrirem, vais ver o sol brilhará" ("Não Sou O Único") é bálsamo para os ouvidos de quem está numa terra onde nunca se vê o sol. E no entanto, tal como em "Vida Malvada", ando de "óculos escuros a torto e a direito" (já me perguntaram se tenho algum problema), porque a ouvir Xutos, na minha cabeça o sol brilha. Bem, pensando melhor, talvez tudo isto seja um exercício de olhar para trás. Mas como não? Portugal continua a ser a minha casa. E os Xutos aproximam-me da minha casinha.
P.S.: Apesar de ter passado estes anos todos a gozar com o "É Xutos, pá!", a verdade é que fui lá mesmo pedir Xutos como o meu colega pediu. O DJ pôs a "Casinha" e foi uma maravilha.
P.P.S.: Dizem que só damos valor ao que não temos e só elogiamos quem já cá não está (o que é verdade, como vimos em cima). Pois bem, vou por isso aproveitar para me antecipar ao guião e deixar a minha homenagem ao meu Xuto preferido — o João Cabeleira. Sem desprimor para os outros Xutos, o Cabeleira tem algo que os separa dos demais. É mais sujo. É mais perigoso. É mais repugnante. E digo isto no melhor dos sentidos. O ar hardcore tem correspondência com o som que sai da sua guitarra, a esborratar continuamente a pintura de fino toque da secção rítmica composta pelo Tim, Kalú e Zé Pedro. Citando a minha mãe quando me quer chamar de javardola, é "uns a limpar por um lado e outros a sujar pelo outro". É isso que o João Cabeleira faz às canções dos Xutos & Pontapés. E ainda bem, que é assim que eu gosto dos meus Xutos — quanto mais sujos, melhor.